Resumo
A COVID longa (ou Long COVID) emergiu como uma preocupação global não apenas pela persistência de sintomas físicos, mas também pelas profundas manifestações neuropsicológicas observadas em uma parcela significativa de pacientes. Este artigo explora os achados de estudos recentes — em especial, um estudo retrospectivo com 155 pacientes da UConn Health (EUA) — que revelam alterações cognitivas e emocionais de longa duração, como fadiga, ansiedade, depressão e distúrbios do sono, frequentemente sem correlação direta com achados em neuroimagem. Discutimos as implicações clínicas, mecanismos neurobiológicos subjacentes, e conexões com áreas como a avaliação neuropsicológica, a psiconeuroimunologia, a reabilitação cognitiva e a neuroplasticidade.
1. Introdução
Desde os primeiros casos de COVID-19, tornou-se evidente que o SARS-CoV-2 pode afetar o sistema nervoso central (SNC). Entretanto, os sintomas persistentes após a infecção aguda — denominados COVID longa — trouxeram à tona manifestações neuropsicológicas que desafiam a detecção por métodos tradicionais de imagem e exigem uma abordagem centrada na neuropsicologia clínica.
2. Perfil Neuropsicológico na COVID Longa
2.1. Sintomas mais prevalentes
Segundo Plant et al. (2025), os sintomas relatados com maior frequência foram:
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Fadiga mental e física persistente (75%)
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Déficits de memória e atenção (65%)
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Ansiedade (53%)
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Depressão (49%)
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Insônia ou distúrbios do sono (44%)
Estes sintomas foram predominantes em mulheres entre 41 e 60 anos, o que reforça a necessidade de abordagens específicas por faixa etária e gênero.
2.2. Síndrome subjetiva versus evidência objetiva
Apesar da intensidade dos relatos, muitos pacientes não apresentavam alterações estruturais detectáveis por ressonância magnética ou tomografia. Isso sugere uma base funcional ou bioquímica — como neuroinflamação ou disfunções neuroimunes — em vez de danos anatômicos visíveis.
3. Possíveis Mecanismos Neurobiológicos
3.1. Neuroinflamação e desregulação imune
A presença prolongada de citocinas inflamatórias no SNC, mesmo após a fase aguda da infecção, pode afetar negativamente a neurogênese, a integridade da mielina e o funcionamento sináptico. Estudos apontam para o papel central de IL-6, TNF-α e IL-1β nesse processo.
3.2. Disfunções da barreira hematoencefálica (BHE)
A inflamação sistêmica pode comprometer a integridade da BHE, permitindo que mediadores inflamatórios e células do sistema imune entrem no cérebro, desencadeando disfunções cognitivas e afetivas.
3.3. Alterações na conectividade funcional
Segundo Samanci et al. (2025), pacientes com COVID longa apresentaram anormalidades em redes neurais como a default mode network (DMN), associada a processos autorreferenciais, memória e regulação emocional.
4. Implicações Clínicas e Intervenções
4.1. Avaliação neuropsicológica
A avaliação formal com instrumentos padronizados (ex: MoCA, WAIS-IV, Stroop, Trail Making Test) é fundamental para identificar déficits cognitivos sutis. Tais medidas permitem diferenciar entre disfunções cognitivas primárias e sintomas secundários à ansiedade e depressão.
4.2. Reabilitação cognitiva
Protocolos de reabilitação baseados em estimulação cognitiva, treinamento de memória e estratégias compensatórias têm mostrado eficácia em melhorar a qualidade de vida desses pacientes.
4.3. Abordagem interdisciplinar
O tratamento deve incluir neurologistas, psiquiatras, psicólogos, fisioterapeutas e terapeutas ocupacionais. A integração com a psiconeuroimunologia também pode ajudar a entender a interação entre estresse, sistema imune e cérebro.
5. Integrações com Outras Áreas da Neuropsicologia
5.1. Neuroplasticidade
A recuperação parcial observada em muitos pacientes pode ser explicada pela capacidade do cérebro de reorganizar suas redes após lesão ou disfunção funcional. Intervenções precoces favorecem a plasticidade adaptativa.
5.2. Neuropsiquiatria
As manifestações emocionais da COVID longa se sobrepõem a transtornos como depressão maior e transtornos ansiosos, exigindo diagnóstico diferencial cuidadoso e tratamento psicofarmacológico quando indicado.
5.3. Neurodesenvolvimento
Em casos pediátricos, ainda em menor número, há indícios de que a COVID longa pode interferir no desenvolvimento de funções executivas, linguagem e atenção, com repercussões escolares e comportamentais.
6. Considerações Finais
A COVID longa desafia os paradigmas tradicionais da neurologia e da psiquiatria ao manifestar sintomas persistentes com etiologia complexa, multifatorial e frequentemente invisível aos exames de imagem. A neuropsicologia desempenha papel central tanto na detecção precoce desses sintomas quanto na reabilitação funcional dos pacientes. Avanços nas pesquisas sobre neuroinflamação, conectividade cerebral e plasticidade serão essenciais para melhorar o prognóstico e a qualidade de vida de milhões de indivíduos afetados globalmente.
Referências (Formato APA 7ª Edição)
Meyer, M., et al. (2025). Long-term neuropsychological consequences of severe COVID-19 infection: the NEUROCOG-COVID study. Journal of Neurology, 272(5), 363–372. https://doi.org/10.1007/s00415-025-13097-x
Plant, A. N., Rasheed, A. Z., & Hasan, M. (2025). Long COVID and the Brain: A Retrospective Study of the Neuropsychological Manifestations of Long COVID. COVID, 5(5), Article 65. https://doi.org/10.3390/covid5050065
Samanci, B., et al. (2025). Persistent neurocognitive deficits in long COVID: Evidence of structural changes and network abnormalities following mild infection. Cortex, 187, 98–110. https://doi.org/10.1016/j.cortex.2025.04.004