A relação entre cérebro, religião e espiritualidade é uma área de pesquisa que tem ganhado cada vez mais destaque na neurociência contemporânea. Em uma recente revisão publicada por McNamara e Grafman (2024) na revista Frontiers in Human Neuroscience, foram sintetizados diversos estudos sobre experiências religiosas e espirituais (RSEs), apontando para a importância crítica da interação entre três redes cerebrais fundamentais: a Rede de Modo Padrão (DMN), a Rede Frontoparietal (FPN) e a Rede de Saliência (SN).

Neste artigo, apresentamos de forma didática os principais pontos dessa revisão, seu modelo teórico, as implicações práticas e perspectivas para futuras pesquisas.

O Modelo Cíclico de Experiência Religiosa: Aplicação do “Modelo de Rede Tripla”

1. As Três Redes Cerebrais Principais:

Rede de Modo Padrão (DMN):
Responsável por processos internos, como autorreflexão, memória autobiográfica, imaginação e construção do “self”.
Está envolvida na percepção de agentes sobrenaturais (SA) e em estados místicos introspectivos.
Rede Frontoparietal (FPN):
Relacionada ao controle executivo, tomada de decisão e foco atencional.
É ativada quando o indivíduo regula cognitivamente suas experiências religiosas ou espirituais, como durante meditações e orações conscientes.
Rede de Saliência (SN):
Detecta estímulos emocionalmente relevantes e direciona a atenção.
Funciona como um “switch” que alterna o cérebro entre estados introspectivos (DMN) e estados de foco externo (FPN).

2. O Modelo Cíclico Proposto:

Baseado no “Modelo de Rede Tripla” de Menon, McNamara e Grafman propõem que:

Início: Ativação da Rede de Saliência (SN) por um estímulo emocional intenso (por exemplo, uma visão, um som sagrado, um estado alterado de consciência).
Transição: SN coordena a alternância entre DMN (exploração de significados internos, percepção de agentes sobrenaturais) e FPN (análise crítica, controle da experiência).
Fechamento: O ciclo se fecha com uma integração da experiência, muitas vezes resultando em sentimentos de união, êxtase ou revelação.

Aplicações do Modelo: Fenômenos Religiosos e Espirituais

Convulsões Extáticas:
Observadas em epilepsia do lobo temporal, essas convulsões apresentam intensa ativação da DMN e disfunção da FPN, resultando em experiências de êxtase religioso espontâneo.

Estados Místicos Induzidos por Psicodélicos:
Substâncias como psilocibina e LSD afetam a dinâmica entre DMN, FPN e SN, diminuindo o controle executivo (FPN) e promovendo visões internas e sentimentos de transcendência (DMN).

Percepções de Agentes Sobrenaturais (SA):
Relacionadas ao aumento da atividade da DMN, que gera simulações mentais de entidades, combinadas com uma diminuição temporária da avaliação crítica da FPN.

Mecanismos do Sono REM e Sonhos:
O sono REM, caracterizado por forte ativação da DMN e flutuação da SN, contribui para a geração de narrativas oníricas que se assemelham a experiências religiosas ou espirituais espontâneas.

Relevância e Aplicações Práticas

Neuropsicologia da Religião:
Oferece um modelo integrado para compreender como o cérebro gera experiências espirituais, místicas e religiosas, tanto normais quanto patológicas.
Psiquiatria:
Ajuda a interpretar experiências anômalas (como visões e revelações) em condições clínicas como esquizofrenia e transtornos dissociativos, promovendo diagnósticos mais precisos.
Estudos Sociais e Culturais:
A compreensão das bases neurais da religiosidade pode explicar mecanismos de coesão social, criação de identidade de grupo e hostilidade intergrupal mediadas por crenças religiosas.

Perspectivas Futuras

Os autores sugerem que futuras pesquisas devem:

Explorar mecanismos de neurodesenvolvimento que moldam a propensão a RSEs ao longo da vida.
Investigar fatores sociais e culturais que modulam a interação das redes cerebrais em contextos religiosos.
Desenvolver intervenções terapêuticas baseadas na modulação de redes cerebrais, visando melhorar o tratamento de transtornos psiquiátricos relacionados a experiências religiosas anômalas.

Conclusão

A revisão de McNamara e Grafman (2024) representa um avanço significativo na compreensão de como o cérebro humano gera e regula experiências religiosas e espirituais. O uso do Modelo de Rede Tripla para explicar fenômenos como convulsões extáticas, estados místicos e percepções de agentes sobrenaturais proporciona uma estrutura teórica robusta e unificadora.

Integrando neurociência, psiquiatria e ciências sociais, este trabalho reforça a importância de uma abordagem interdisciplinar para o estudo da mente humana, espiritualidade e religiosidade.

Referência:
McNamara, P., & Grafman, J. (2024). Advances in brain and religion studies: a review and synthesis of recent representative studies. Frontiers in Human Neuroscience, 18, 1495565. DOI: 10.3389/fnhum.2024.1495565 (Artigo gratuito no PubMed).

Modelo Cíclico baseado no Modelo de Rede Tripla (TPM)

1. Redes Envolvidas:

Rede de Modo Padrão (DMN):
- Autorreflexão, memória autobiográfica
- Percepção de agentes sobrenaturais (SA)
Rede Frontoparietal (FPN):
- Controle executivo, análise crítica
- Moderação consciente das experiências
Rede de Saliência (SN):
- Detecção de estímulos emocionalmente relevantes
- Coordena a alternância entre DMN e FPN

Ciclo da Experiência Religiosa/Espiritual

Início: Estímulo emocional ativa a SN

Transição: SN alterna entre:

DMN (experiência interna/mística)
FPN (controle e interpretação crítica)

Fechamento: Integração da experiência mística/conscientização

Exemplos de Fenômenos Religiosos

Convulsões Extáticas:
- Hiperativação da DMN, disfunção da FPN
Estados Místicos com Psicodélicos:
- Redução do controle da FPN, liberdade da DMN
Percepção de Agentes Sobrenaturais:
- Simulação de presenças através da DMN
Sono REM e Sonhos:
- Ativação espontânea da DMN

Relevância Prática

Neuropsicologia da Religião: Explicação integrada de RSEs
Psiquiatria: Diagnóstico de experiências anômalas
Ciências Sociais: Bases neurais da coesão e hostilidade em grupos religiosos

Futuras Direções de Pesquisa

Neurodesenvolvimento das redes cerebrais
Efeitos sociais das RSEs
Terapias baseadas em modulação de redes