Um crescente corpo de evidências neurocientíficas está reformulando nossa compreensão sobre os efeitos dos contraceptivos hormonais (CHs) além de sua função reprodutiva. A recente revisão publicada por Lacasse et al. (2024) no Journal of Neuroscience compila achados de neuroimagem estrutural humana e modelos animais translacionais, destacando alterações cerebrais associadas ao uso de CHs e suas implicações na saúde mental e fisiologia do estresse — especialmente em mulheres adolescentes.
Alterações estruturais e funcionais induzidas por CHs
A literatura analisada pela equipe liderada por Lacasse aponta que os CHs — comumente compostos por progestagênios sintéticos e estrogênios — induzem mudanças mensuráveis em regiões como o córtex pré-frontal, a amígdala e o hipocampo. Um exemplo ilustrativo vem de estudos de ressonância magnética estrutural que mostram redução do volume amigdaliano em usuárias de CHs, estrutura central na modulação da resposta emocional e da detecção de ameaças. Essa alteração pode ajudar a explicar as correlações observadas entre CHs e aumento da reatividade emocional ou sintomas depressivos em algumas mulheres.
Em paralelo, estudos com roedores revelam alterações sinápticas e epigenéticas induzidas por progestagênios sintéticos, como a supressão da neurogênese hipocampal e modificações nos receptores de glicocorticoides, sugerindo impacto direto sobre os mecanismos de regulação do eixo HPA.
Adolescência: uma janela de vulnerabilidade
Um dos pontos mais críticos levantados pela revisão é o uso de CHs durante a adolescência — um período marcado por intensa maturação sináptica, remodelação cortical e reorganização do eixo HPA. Estudos longitudinais indicam que o início precoce do uso de CHs pode estar associado a alterações persistentes na conectividade funcional de redes cortico-límbicas, bem como à sensibilidade aumentada a estressores sociais.
Por exemplo, adolescentes usuárias de CHs apresentam menor variabilidade do cortisol salivar frente a tarefas estressantes, o que pode indicar uma dessensibilização do eixo HPA. Isso levanta questões sobre o papel modulador dos esteroides sexuais exógenos sobre o desenvolvimento das vias fronto-amigdalianas e sua implicação para a regulação emocional de longo prazo.
Interações medicamentosas e risco cerebral
A revisão também chama atenção para os efeitos sinérgicos entre CHs e outras substâncias neuroativas, com destaque para a nicotina. Em modelos animais, a coadministração de progestagênios e nicotina exacerba lesões isquêmicas em regiões vulneráveis como o córtex e o hipocampo, sugerindo que CHs podem modular a resposta neuroinflamatória ou alterar a neurovascularização em contextos de insulto cerebral. Clinicamente, isso levanta preocupações sobre o uso concomitante de CHs e tabaco, ainda prevalente entre jovens, e suas potenciais implicações no risco de eventos neurológicos adversos.
Implicações clínicas e direções futuras
Apesar da robustez das descobertas, Lacasse e colegas enfatizam os desafios metodológicos recorrentes na literatura, como heterogeneidade dos compostos hormonais, variações nas vias de administração e ausência de grupos controle adequados. Tais limitações dificultam a generalização dos achados e reforçam a urgência de estudos interdisciplinares que integrem neurociência, endocrinologia e saúde pública.
Do ponto de vista translacional, os dados reunidos sugerem caminhos promissores: o desenvolvimento de CHs com perfis neurobiológicos mais seguros, estratégias para triagem de mulheres com maior susceptibilidade a efeitos adversos (como histórico familiar de transtornos de humor), e protocolos de aconselhamento clínico mais informados — especialmente para adolescentes e jovens adultas.
O impacto dos contraceptivos hormonais vai além da regulação do ciclo menstrual: ele atinge circuitos neurais centrais ao processamento emocional, resposta ao estresse e plasticidade cerebral. Compreender esses efeitos é fundamental para promover uma medicina mais personalizada, neuroinformada e preventiva no cuidado à saúde da mulher.