Nova descoberta muda completamente nossa compreensão sobre o Transtorno de Estresse Pós-Traumático e abre caminho para tratamento revolucionário
Por Cerebralmente | Agosto 2025
Imagine descobrir que, durante décadas, estivemos olhando para o lugar errado ao tentar entender por que algumas pessoas não conseguem superar traumas. Foi exatamente isso que aconteceu com uma equipe internacional de pesquisadores do Instituto de Ciências Básicas (IBS) e da Universidade Ewha Womans, na Coreia do Sul. Eles descobriram que os astrócitos – células em forma de estrela tradicionalmente vistas como mero “pessoal de apoio” dos neurônios – são, na verdade, os principais responsáveis pela incapacidade do cérebro de esquecer memórias traumáticas no TEPT.
O Problema Central: Quando o Cérebro Não Consegue Esquecer
Para neuropsicólogos que trabalham com pacientes traumatizados, uma das frustrações mais comuns é observar a persistência das memórias de medo, mesmo após meses ou anos de terapia. Os medicamentos atuais, que visam os receptores de serotonina, oferecem alívio limitado para muitos pacientes. Mas por que isso acontece?
A resposta, segundo o estudo publicado na revista Signal Transduction and Targeted Therapy, está em um desequilíbrio químico surpreendentemente específico. Os pesquisadores descobriram que o excesso de GABA (ácido gama-aminobutírico) produzido pelos astrócitos prejudica a capacidade do cérebro de extinguir memórias de medo.
A Virada de Jogo: Astrócitos Como Protagonistas
Durante muito tempo, os astrócitos foram considerados células de suporte passivas, responsáveis apenas por manter o ambiente cerebral estável. Esta nova pesquisa vira essa perspectiva de cabeça para baixo.
Exames cerebrais de mais de 380 pessoas mostraram que pacientes com TEPT tinham níveis anormalmente altos de GABA na região do córtex pré-frontal medial (mPFC) e menor fluxo sanguíneo em comparação com indivíduos saudáveis. Mais revelador ainda: quando alguns pacientes melhoraram após o tratamento, seus níveis de GABA caíram – um forte sinal de que o excesso de GABA estava conectado à recuperação.
O Mecanismo Molecular: MAOB Como Vilã
Mas de onde vem todo esse GABA extra? Ao examinar tecido cerebral post-mortem humano e usar modelos de camundongos com TEPT, os pesquisadores descobriram que os astrócitos, não os neurônios, estavam produzindo quantidades anormais de GABA através da enzima monoamina oxidase B (MAOB).
O mecanismo é elegantemente perverso: a enzima MAOB produz GABA em excesso nos astrócitos, enquanto simultaneamente a enzima que degrada o GABA (ABAT) está reduzida. Juntos, essa combinação causa o acúmulo de GABA astrocítico e inibição tônica excessiva em regiões cerebrais-chave como o córtex pré-frontal.
KDS2010: A Promessa de um Novo Paradigma
Aqui é onde a história fica ainda mais empolgante. Quando os pesquisadores administraram KDS2010, um inibidor de MAOB altamente seletivo e reversível desenvolvido no IBS, os camundongos mostraram atividade cerebral normalizada e foram capazes de extinguir respostas de medo.
O KDS2010 não é apenas mais uma droga experimental distante da realidade clínica. O medicamento já passou por testes de segurança de Fase 1 em humanos, mostrando um perfil favorável sem efeitos adversos graves, mesmo em doses mais altas.
Implicações Revolucionárias para a Prática Clínica
1. Mudança de Alvo Terapêutico
Pela primeira vez, temos um tratamento que não visa neurônios ou neurotransmissores tradicionais, mas sim as células gliais. Isso representa uma mudança fundamental em nossa abordagem ao TEPT.
2. Potencial de Combinação com Psicoterapia
O Dr. Woojin Won, coautor do estudo, explicou que “ao reduzir a inibição anormal nos circuitos de extinção do medo, o KDS2010 pode ajudar o cérebro a se tornar mais responsivo ao input terapêutico”. Imagine o potencial de combinar este medicamento com terapia de exposição ou EMDR!
3. Administração Simples
O KDS2010 é uma molécula pequena disponível oralmente, administrada uma vez ao dia em forma de cápsula ou líquida. Isso o torna altamente viável para uso ambulatorial de longo prazo, similar aos antidepressivos atuais.
4. Além do TEPT
Os pesquisadores sugerem que essa descoberta abre um paradigma terapêutico completamente novo não apenas para o TEPT, mas também para outros transtornos neuropsiquiátricos como transtorno do pânico, depressão e esquizofrenia.
O Que Isso Significa para Neuropsicólogos?
Esta descoberta tem várias implicações práticas importantes:
Reavaliação de Casos Resistentes: Pacientes que não responderam aos tratamentos convencionais podem ter esse desequilíbrio astrocítico específico. Vale a pena acompanhar o desenvolvimento dos ensaios clínicos do KDS2010.
Nova Compreensão da Neurobiologia do Trauma: A descoberta de que células não-neuronais desempenham um papel ativo nos sintomas psiquiátricos expande nossa compreensão sobre como o cérebro processa e mantém memórias traumáticas.
Esperança Baseada em Evidências: Com apenas 20-30% dos pacientes alcançando remissão completa com os tratamentos atuais, esta nova abordagem oferece esperança real para os 70-80% restantes.
O Método “Tradução Reversa”: Uma Lição em Pesquisa Inovadora
Um aspecto fascinante deste estudo foi sua metodologia. Os pesquisadores usaram uma estratégia de “tradução reversa”: começaram com exames cerebrais clínicos e trabalharam de trás para frente para identificar a fonte celular da disfunção.
Este approach conectou elegantemente três níveis de evidência:
- Nível clínico: Imagens cerebrais de pacientes com TEPT
- Nível celular: Análise de tecido cerebral post-mortem
- Nível experimental: Modelos animais para testar intervenções
Perguntas Frequentes para a Prática Clínica
P: Quando o KDS2010 estará disponível? R: O medicamento está atualmente em ensaios clínicos de Fase 2. Se bem-sucedido, ainda levará alguns anos antes da aprovação regulatória completa.
P: Isso significa que devemos abandonar as terapias atuais? R: Absolutamente não. Esta descoberta complementa, não substitui, as abordagens existentes. A combinação de KDS2010 com psicoterapia pode ser especialmente promissora.
P: Todos os pacientes com TEPT têm esse desequilíbrio de GABA? R: O estudo sugere que é um mecanismo comum, mas não necessariamente universal. Futuros biomarcadores podem ajudar a identificar quais pacientes se beneficiariam mais desta abordagem.
Olhando para o Futuro
Como enfatizou o Dr. C. Justin Lee, diretor do estudo: “Este trabalho representa um exemplo bem-sucedido de pesquisa translacional reversa, onde descobertas clínicas em humanos guiaram a descoberta de mecanismos subjacentes em modelos animais”.
Para neuropsicólogos trabalhando nas trincheiras do tratamento do trauma, esta descoberta oferece algo precioso: uma nova maneira de entender por que alguns cérebros ficam presos no medo e, mais importante, um caminho concreto para ajudá-los a se libertar.
A história dos astrócitos no TEPT nos lembra que, mesmo após décadas de pesquisa, o cérebro ainda guarda surpresas fundamentais. E às vezes, a chave para resolver problemas complexos está em olhar para lugares que sempre estiveram lá, mas que nunca realmente vimos.
Referência Principal: Won, W., Lyoo, I.K., Lee, C.J., et al. (2025). Astrocytic gamma-aminobutyric acid dysregulation as a therapeutic target for posttraumatic stress disorder. Signal Transduction and Targeted Therapy.