sábado, setembro 13, 2025

A compreensão das causas do Transtorno do Espectro Autista (TEA) tem avançado significativamente nas últimas décadas, revelando uma complexa interação entre fatores genéticos, epigenéticos e ambientais. Ao mesmo tempo, estudos sobre doenças genéticas raras, como a distrofia miotônica tipo 1 (DM1), têm fornecido pistas valiosas sobre os mecanismos moleculares que podem contribuir para alterações no neurodesenvolvimento. Um estudo recente destaca uma possível ponte entre essas duas condições, sugerindo que alterações no processamento do RNA em indivíduos com DM1 podem contribuir para traços autísticos.

O que é a Distrofia Miotônica Tipo 1 (DM1)?

A DM1 é uma doença genética autossômica dominante causada pela expansão anormal de repetições trinucleotídicas (CTG) no gene DMPK (myotonic dystrophy protein kinase), localizado no cromossomo 19. Essa expansão resulta na produção de RNA mensageiro (mRNA) com repetições CUG anômalas, que se acumulam no núcleo celular e sequestram proteínas reguladoras importantes, como a família MBNL (Muscleblind-like proteins).

As consequências disso não se limitam aos músculos: como os RNAs e proteínas envolvidas são amplamente expressos no corpo, inclusive no cérebro, há impactos significativos também nas funções cognitivas e comportamentais.

Transtorno do Espectro Autista (TEA) e Splicing de RNA

O TEA é caracterizado por dificuldades na comunicação social, comportamentos repetitivos e interesses restritos. Embora sua etiologia seja multifatorial, sabe-se que muitos genes associados ao risco de autismo estão relacionados ao desenvolvimento neural, sinaptogênese e regulação do splicing de RNA.

O splicing é o processo de edição do RNA mensageiro que remove íntrons e junta éxons, gerando diferentes variantes de proteínas a partir de um único gene. Alterações nesse processo, especialmente nos chamados microexons (pequenas regiões codificantes com função crítica no cérebro), têm sido implicadas na patogênese do autismo (Irimia et al., 2014).

O Estudo: Ligação entre DM1 e TEA

Um estudo recente (Zhang et al., 2023) investigou como as expansões CTG no gene DMPK, típicas da DM1, podem influenciar o desenvolvimento de características autísticas. Os pesquisadores demonstraram que o acúmulo de RNAs mutantes com repetições CUG sequestra as proteínas MBNL, prejudicando o splicing normal de diversos genes, inclusive genes associados ao risco de autismo.

Modelos em Camundongos

Para investigar esse mecanismo, foram utilizados dois modelos de camundongos:

  • Um com expansão DMPK-CTG semelhante à DM1;

  • Outro com deleção (knockout) das proteínas MBNL.

Ambos os modelos apresentaram perfis de mis-splicing semelhantes aos observados em TEA, além de déficits de comportamento social e respostas alteradas a estímulos novos, comportamentos comumente encontrados em modelos animais de autismo.

Exemplos Práticos e Implicações Clínicas

1. Diagnóstico Diferenciado

Um exemplo clínico importante é o de crianças diagnosticadas com TEA que, ao serem submetidas a avaliações genéticas detalhadas, revelam alterações compatíveis com DM1, especialmente quando há histórico familiar sugestivo de doenças neuromusculares. Esses achados reforçam a importância de uma avaliação genética aprofundada em casos de TEA com características atípicas ou comorbidades neuromusculares.

2. Potenciais Terapias

Ao entender que a disfunção das proteínas MBNL está envolvida em ambas as condições, novas estratégias terapêuticas podem ser desenvolvidas. Por exemplo, compostos que liberam MBNL dos RNAs mutantes ou restauram o splicing correto dos microexons estão sendo investigados como potenciais tratamentos para DM1 e, indiretamente, podem ter efeitos benéficos em sintomas autísticos associados (Wang et al., 2019).

3. Intervenção Precoce

Em famílias com diagnóstico confirmado de DM1, é possível realizar monitoramento precoce do desenvolvimento neuropsicológico das crianças, buscando sinais de alterações sociais, de linguagem e comportamento, possibilitando intervenção precoce, que é fundamental para o melhor prognóstico em TEA.

Conclusão

Este estudo representa um passo importante na compreensão das sobreposições moleculares entre condições neurogenéticas e transtornos do neurodesenvolvimento. A descoberta de que o sequestro de proteínas MBNL por RNAs mutantes pode afetar genes de risco para o autismo por meio do mis-splicing amplia as possibilidades de diagnóstico, prevenção e tratamento.

Ao conectar a biologia molecular com a clínica, pesquisas como essa nos ajudam a construir pontes entre diferentes áreas da saúde e apontam para uma abordagem mais integrada e personalizada da medicina.


Referências Bibliográficas

  • Irimia, M., Weatheritt, R. J., Ellis, J. D., et al. (2014). A highly conserved program of neuronal microexons is misregulated in autistic brains. Cell, 159(7), 1511–1523. https://doi.org/10.1016/j.cell.2014.11.035

  • Wang, E. T., Cody, N. A., Jog, S., et al. (2012). Transcriptome-wide regulation of pre-mRNA splicing and mRNA localization by muscleblind proteins. Cell, 150(4), 710–724. https://doi.org/10.1016/j.cell.2012.06.041

  • Zhang, W., Long, X., Duan, R., et al. (2023). Mis-splicing of autism risk genes via MBNL sequestration links myotonic dystrophy type 1 to autism spectrum disorder traits. Nature Neuroscience, 26, 768–780. https://doi.org/10.1038/s41593-023-01367-w

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