A pandemia da COVID-19 trouxe inúmeros desafios à saúde pública global. Entre eles, destaca-se a chamada COVID longa (ou “Long COVID”), uma condição caracterizada pela persistência de sintomas semanas ou meses após a infecção inicial. Dentre os sintomas mais preocupantes, os déficits neurocognitivos — mesmo em casos leves de COVID-19 — vêm recebendo atenção crescente da comunidade científica.
Este artigo explora de forma didática os achados recentes sobre os impactos neuropsicológicos da COVID longa, com foco em alterações estruturais e funcionais cerebrais, exemplos práticos e implicações clínicas.
Quais são os déficits cognitivos observados?
Mesmo em casos leves, indivíduos que se recuperaram da COVID-19 podem apresentar prejuízos significativos nas seguintes funções:
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Memória de trabalho e episódica: dificuldades em reter ou evocar informações recentes.
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Atenção sustentada e seletiva: dificuldade em manter o foco ou alternar entre tarefas.
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Funções visuoespaciais: erros de localização ou percepção espacial (ex: perder objetos de vista facilmente).
Exemplo prático: Um paciente de 42 anos, antes saudável e com função executiva intacta, relata após a COVID-19 leve dificuldade em lembrar nomes de colegas de trabalho, em seguir instruções simples no trabalho e em localizar objetos no ambiente doméstico.
Alterações Cerebrais Evidenciadas
O estudo publicado na ScienceDirect (2024) utilizou ressonância magnética funcional em estado de repouso (rs-fMRI) e morfometria baseada em voxel (VBM) para analisar o cérebro de 75 participantes — divididos entre controles saudáveis, recuperados sem névoa cerebral e com névoa cerebral.
Principais achados estruturais:
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Redução de massa cinzenta em regiões como:
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Giro temporal inferior
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Giro fusiforme
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Giros orbitais
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Núcleo caudado
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Putâmen/pálido
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Amígdala
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Essas regiões estão associadas à memória, emoções, reconhecimento visual e funções executivas.
Alterações em redes funcionais:
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Rede de modo padrão (DMN): associada à introspecção e memória autobiográfica.
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Rede de atenção dorsal: responsável pela atenção dirigida e foco consciente.
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Rede visual: envolvida no processamento de estímulos visuais.
Pacientes com “névoa cerebral” mostraram disfunções mais acentuadas nessas redes, o que pode explicar a sensação subjetiva de confusão mental ou lentidão cognitiva.
O que é “névoa cerebral”?
Embora não seja um termo técnico oficial, a “névoa cerebral” é uma queixa recorrente entre pacientes com COVID longa e descreve sensações como:
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Pensamento lento
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Esquecimentos frequentes
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Dificuldade de concentração
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Sensação de “não estar presente”
Exemplo clínico: uma professora universitária relatou dificuldade em organizar suas aulas, algo que fazia com facilidade antes da infecção. Embora os testes neuropsicológicos mostrassem alterações discretas, sua percepção de desempenho cognitivo era profundamente afetada.
Implicações para a Neuropsicologia Clínica
1. Avaliação neuropsicológica contínua
É fundamental realizar baterias de testes padronizados, como:
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Teste de trilhas (TMT-A/B)
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WAIS-IV (Subtestes de memória e atenção)
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Testes visuoespaciais (Rey Complex Figure, por exemplo)
2. Reabilitação cognitiva
Programas personalizados que incluam:
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Treino de atenção com softwares específicos
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Estratégias mnemônicas para apoio à memória
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Terapias cognitivas integradas com suporte psicológico
3. Intervenções multidisciplinares
A atuação conjunta de neurologistas, psiquiatras, neuropsicólogos e fisioterapeutas pode ser essencial para um plano de reabilitação mais eficaz.
Referências Bibliográficas
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Douaud, G. et al. (2022). SARS-CoV-2 is associated with changes in brain structure in UK Biobank. Nature, 604, 697–707. https://doi.org/10.1038/s41586-022-04569-5
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Meinhardt, J. et al. (2021). Olfactory transmucosal SARS-CoV-2 invasion as a port of central nervous system entry in individuals with COVID-19. Nature Neuroscience, 24, 168–175.
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Ortelli, P. et al. (2021). Neuropsychological and neurophysiological correlates of fatigue in post-acute patients with COVID-19. Neurological Sciences, 42, 1873–1878.
Considerações Finais
Os dados apontam para um fenômeno real e mensurável de déficits cognitivos em pacientes com COVID longa, mesmo na ausência de sintomas graves na fase aguda. O papel da neuropsicologia clínica torna-se, portanto, essencial tanto no diagnóstico quanto na reabilitação desses pacientes, com o objetivo de restaurar a funcionalidade e a qualidade de vida.