A pandemia de COVID-19 revelou uma ampla gama de manifestações neurológicas associadas à infecção pelo SARS-CoV-2, mesmo em casos considerados leves. Um dos sintomas mais relatados, especialmente por pacientes não hospitalizados, é a chamada “névoa cerebral” — um conjunto de queixas cognitivas inespecíficas envolvendo dificuldade de concentração, lapsos de memória, lentidão de raciocínio e fadiga mental. Este artigo baseia-se no estudo de Stephens et al. (2025), que utilizou fMRI de repouso para investigar a conectividade funcional da Rede de Modo Padrão (DMN) em pacientes com sintomas cognitivos persistentes após a COVID-19.
Objetivo
Caracterizar alterações na conectividade da DMN em indivíduos com queixas cognitivas pós-COVID e investigar como essas alterações se relacionam com o desempenho neuropsicológico.
Fundamentação Teórica
A Rede de Modo Padrão (DMN)
A DMN é um conjunto de regiões cerebrais funcionalmente conectadas que se ativam durante o repouso e estão envolvidas em processos introspectivos como memória autobiográfica, teoria da mente e planejamento futuro. As principais regiões da DMN incluem:
- Córtex cingulado posterior (PCC)
- Córtex medial pré-frontal (mPFC)
- precuña
- Hipocampo
- Regiões temporais e parietais laterais
Teorias sobre os mecanismos da “névoa cerebral”
- Hipóxia leve e disfunção neurovascular: mesmo em casos leves de COVID-19, pode ocorrer hipoperfusão cerebral discreta, alterando a comunicação entre regiões da DMN.
- Inflamação sistêmica e neuroinflamação: tempestades de citocinas podem atravessar a barreira hematoencefálica e afetar a integração funcional entre regiões corticais.
- Modelo de reserva cognitiva: indivíduos com menor reserva cognitiva podem apresentar mais sintomas, mesmo com alterações discretas na DMN.
Metodologia
- Amostra: Pacientes não hospitalizados com histórico confirmado de COVID-19 e queixas cognitivas subjetivas persistentes.
- Ferramentas neuropsicológicas: MoCA (Montreal Cognitive Assessment) e RBANS (Repeatable Battery for the Assessment of Neuropsychological Status).
- Análise de conectividade: fMRI de repouso com análise seed-based focada em regiões centrais da DMN.
Resultados
- Pacientes com queixas cognitivas apresentaram redução da conectividade funcional entre o PCC e o hipocampo, bem como entre o mPFC e regiões temporais.
- Tais reduções foram significativamente correlacionadas com escores mais baixos nos testes de memória imediata e funções executivas.
- Observou-se um padrão de disconectividade semelhante ao encontrado em condições neurodegenerativas iniciais, como a Doença de Alzheimer.
Exemplos Didáticos e Aplicativos
- Um paciente de 45 anos, sem comorbidades, que relatava dificuldade para lembrar compromissos e manter a atenção em tarefas rotineiras, apresentou conectividade reduzida entre PCC e hipocampo, e baixo desempenho na memória de curto prazo no RBANS.
- Em termos clínicos, isso pode justificar o uso de intervenções como estimulação cognitiva personalizada e monitoramento longitudinal com fMRI.
Implicações Clínicas
- A fMRI pode servir como biomarcador precoce para alterações cognitivas pós-COVID.
- A identificação de padrões de conectividade anormal pode guiar a reabilitação neuropsicológica, priorizando as redes mais comprometidas.
- Pode ajudar a estratificar o risco de declínio cognitivo progressivo e orientar a pesquisa sobre neuroproteção pós-viral.
Conclusão
As alterações na conectividade da DMN observadas em pacientes com “névoa cerebral” pós-COVID-19 representam um fenômeno mensurável, clinicamente relevante e teoricamente plausível com base em mecanismos inflamatórios e hipóxicos. Estudos como o de Stephens et al. (2025) são essenciais para ampliar o entendimento da neuropsicologia pós-viral e promover cuidados baseados em evidências.